terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Sobre o trabalho

"Quem anda duzentas jardas sem vontade anda seguindo o próprio funeral, vestindo a própria mortalha..." (Walt Whitman)

Confesso: não gosto de trabalhar. Isso por que muitas vezes o trabalho é uma obrigação, e eu gosto de ser feliz. Não se é feliz cumprindo obrigações. Agora mesmo era para eu estar trabalhando, mas eu não tô muito bem, e ser infeliz neste momento só ia piorar as coisas. 

Meus pais dizem que o trabalho traz dignidade. Acreditei nisso durante muito tempo. Hoje discordo um pouco. Acredito que o que traz dignidade é o amor. O trabalho apresenta uma outra dignidade, que a ver com técnica e aparência. A dignidade presenteada pelo amor, é natural, pura e tem a ver com a parte humana dos seres.

Segundo a bíblia o "trabalho" foi entregue ao homem como castigo de Deus a Adão - “No suor do teu rosto comerás o teu pão...” - por ter, junto com Eva, dado ouvidos à serpente, comendo o fruto da árvore que estava no meio jardim do Éden:  Talvez seja por esse motivo que eu não tenho afinidades com trabalho: não gosto de castigos.

Os ocorridos bíblicos são subjetivos, interpretativos, coisa de crença. Mas tem sentido. O trabalho geralmente é um castigo: acordar cedo, ou dormir tarde, pegar ônibus ou trens lotados, engarrafamentos nas avenidas, suar excessivamente, ouvir superiores ranzinzas, fazer o máximo de esforço, ter ‘o mínimo’ como recompensa, e tudo isso sem vontade alguma, e pior sem amor. Creio que hoje em dia, com tudo que há, a palavra “castigo”, para definir o trabalho, tenha ficado um pouco defasada.

Como eu já disse hoje eu não fui ao trabalho. Uma grande falta de responsabilidade. Mas estava mesmo difícil. Fiquei pensando para onde iria, e quando menos percebi estava sendo feliz com o livro A Descoberta do Mundo, da Clarice, nas mãos. Lendo em pé, pois estava numa livraria. Fico feliz quando estou em uma livraria. Aquele universo de mundos a serem descobertos – o livro da Clarice até pelo título estava coerente.

Pelo fato de estar sem recursos financeiros, não posso, como realmente gosto, adquirir os livros pelos quais estou me apaixonando. Portanto, para lê-los, é necessário ficar na livraria, muitas vezes, como disse, em pé; lendo trechos em pé; mas por livre e espontâneo prazer, por amor: sendo feliz.

Por ficar muito tempo ali na livraria e conduzido pelo meu dilema “trabalho ou amor?” comecei a reparar nos funcionários da livraria. Ficam ali trabalhando, obrigados. Obrigados?! Não, isso eu não sei. Mas talvez eu possa afirmar que estão cumprindo obrigações. Não podem, por exemplo, parar de repente, pegar um livro e começar a lê-lo. Nem em pé, como eu faço. Eles precisam organizar, mover, guardar, repor, carregar, atender, essas são as suas funções de empregados de uma livraria: seu trabalho.

Penso então no amor que tenho pelos livros. Além do próprio conteúdo, o quanto saboreio tocá-los. O quanto adoro o cheiro das páginas, cheiro de papel “novinho em folha”. O quanto me interesso pelas capas criativas e interessantes, e o quanto critico as que apenas visam chamar atenção, para preencher a falta de conteúdo do exemplar. Toda essa parte material que para a essência do livro é apenas um complemento supérfluo, para o meu tato, para o meu olfato, para os meus olhos, é uma fonte de prazer inicial.

Então eu imagino como seria estar no lugar de um dos funcionários: trabalhando com o que amo. Imagino-me organizando, guardando, repondo, movendo, carregando, atendendo, com todas as terefas dos funcionários, com as suas gostosas obrigatoriedades de mergulhar na superfície logística dos livros. Envolvido no mundo das editoras, falando de quantidades em estoque, devoluções, reservas; infiltrado nas prateleiras de Literatura Brasileira, Filosofia e até de Auto-ajuda, parando para atender algum cliente, recomendando a ele escritos da Clarice. Eu, ali, trabalhando numa livraria: suando com o que amo.

Rick Warren diz que "normalmente não é o excesso de trabalho que nos estressa, e sim o trabalho sem sentido". Talvez seja mesmo isso. Quando se faz o que gosta, se enxerga o real sentido da função,  não se encara como uma obrigação, ou como um trabalho no sentido bíblico: castigo divino. Quando se trabalha com que se gosta encara-se, na verdade, como uma diversão rotineira que ainda por cima rende proventos no final do mês. É como tomar banho: necessário, mas gostoso.


Assim começo a perceber que o que eu não gosto realmente é de ser obrigado a chorar. Já chorar vendo um filme é muito bom. Eu adoro. Ou seja, não gosto do trabalho-castigo: obrigação, sem amor, sem prazer, sem sabor, sem saber, com dor. Gosto do que não caracterizamos como trabalho, por ser tão bom para a nossa alma.

Vejo o meu pai dirigindo. Acordando cedo para dirigir. Dormindo tarde porque estava dirigindo. Passando os dias dirigindo. E quando vai passear com a família, num momento de lazer, de tranquilidade, de paz, ele nem pensa: vai para o seu lugar com as mãos no volante, conduzir. Isso porque dirigir para ele não é sua obrigação, é a sua paixão. Ele ama ser condutor: faz por trabalho, mas faz também por/com amor.

Após essa longa tentativa de me redimir pelo fato de ser vocacionado à felicidade, digo àqueles que me condenaram no início que se um dia eu puder fazer o que eu gosto, se eu puder passar as minhas noites acordado para terminar um trabalho que será entregue no dia seguinte porque amo o que faço, prometo que direi: Adoro trabalhar - adoro ser feliz.